A Vida dos Escravos Africanos no Brasil: Violência e Resistência

Esta cena retrata o cotidiano em uma senzala, mostrando a vida das pessoas escravizadas em um ambiente rústico, provavelmente próximo a uma plantação. No centro da imagem há uma cabana de taipa com telhado de palha, na frente da qual se reúnem diversas pessoas negras, incluindo mulheres, homens e várias crianças. Algumas mulheres estão sentadas ou de pé, uma amamentando um bebê, outra carregando uma criança no colo. Outras crianças, de diferentes idades, brincam ou sentam-se no chão de terra clara. Dois homens, um sentado na entrada da cabana e outro agachado em primeiro plano, trabalham trançando fibras vegetais, provavelmente fazendo esteiras ou cestos. Uma mulher, mais ao fundo, caminha equilibrando uma vasilha sobre a cabeça, enquanto uma criança pequena a acompanha. Do lado esquerdo, há um homem deitado sobre uma esteira e outro sentado próximo a ele, ambos em posição de descanso. Ao fundo, vegetação abundante, com bananeiras, coqueiros e um pé de mamão com frutos amarelos. O cenário mostra simplicidade, vida comunitária e resiliência, com cores terrosas predominando, além dos tons verdes da natureza.
Uma senzala, local de moradia dos negros escravizados no Brasil. Pintura de Rugendas. Domínio público.

Durante o período colonial brasileiro e até depois da independência do país, a escravidão foi um elemento complexo e brutal da vida dos africanos e de seus descendentes. Eles foram subjugados por um sistema de trabalho compulsório e de dominação por meio da violência física e psicológica, com o intuito de serem explorados para gerar lucros econômicos. Os escravos viviam em condições desumanas e não tinham qualquer proteção perante a lei. Mesmo nesse cenário adverso, os escravizados desenvolveram múltiplas formas de resistência e de preservação das suas culturas originárias, as quais contribuíram para que eles deixassem um legado fundamental e duradouro na identidade brasileira.

Resumo

  • A mão de obra escravizada foi o alicerce da economia brasileira durante séculos.
  • Existiam diferentes categorias de trabalho escravo: os escravos do eito, os escravos domésticos, os escravos de ganho (escravos urbanos) e os escravos especializados.
  • Os escravizados viviam em senzalas com péssimas condições de higiene e superlotação, e tinham alimentação básica e de baixa qualidade, focada em manter a capacidade de trabalho.
  • Nos termos da lei, os escravizados eram considerados propriedade dos senhores e, portanto, não tinham direitos civis.
  • A violência física e psicológica contra os escravos era ampla e institucionalizada.
  • Os escravizados resistiam à opressão a partir de diversas ações, como sabotagens, lentidão no trabalho, preservação da cultura e fugas.
  • Os escravizados preservaram a cultura africana e adaptaram-na ao Brasil, resultando no sincretismo religioso e em grandes influências sobre a música, a dança, a língua, a culinária e a medicina no país.
  • Laços de solidariedade, famílias alternativas e irmandades religiosas serviam como redes de apoio social aos escravos.

O trabalho compulsório

A maioria dos escravos no Brasil colonial estava ligada às atividades agrícolas e extrativistas, em especial nas grandes fazendas e engenhos. Inicialmente Portugal promoveu a escravização indígena, mas posteriormente, passou a utilizar a mão de obra africana. Os cativos foram o alicerce da economia colonial brasileira e da economia imperial brasileira durante os ciclos do açúcar (do século XVI ao XVII), do ouro (no século XVIII) e do café (no século XIX). Em linhas gerais, o trabalho compulsório dos escravos de origem africana pode ser dividido em quatro tipos significativamente diferentes:

  • Os escravos do eito eram aqueles que trabalhavam na lavoura e, por isso, tinham as piores condições. No engenho açucareiro típico, os escravos começavam a trabalhar ao amanhecer e seguiam até o anoitecer, sob a vigilância de feitores (capatazes) armados de chicotes. Em grande maioria, os africanos trabalhavam em uma jornada exaustiva, em regime incessante — como se dizia à época, eles “trabalhavam até cair de cansaço”. Os escravos eram os responsáveis por plantar e cortar a cana-de-açúcar, transportar as toras pesadas até o engenho, alimentar as moendas e fornalhas, e fazer outros variados serviços. Frequentemente, eles trabalhavam mais do que 12 horas por dia, tendo apenas pequenas pausas para fazerem refeições modestas. Era comum que comessem farinha de mandioca, feijão, e algum peixe seco ou carne salgada de baixa qualidade. Nas fazendas de café do século XIX, a situação era semelhante ou pior. O cafezal era plantado em terrenos íngremes, o que exigia intenso esforço físico para capinar, colher e carregar as sacas. Naquela época, eram habituais cenas de escravos subindo as encostas da região de São Paulo com enormes cestos de café nas costas, enquanto eram açoitados para manter o ritmo.
  • Os escravos domésticos eram aqueles que trabalhavam na casa-grande, servindo diretamente a família do senhor. Cuidavam da cozinha, da limpeza, do serviço de mesa, da lavagem de roupas, da criação dos filhos dos senhores (amas de leite e babás), etc. Esses escravizados viviam sob o mesmo teto do senhor ou em acomodações próximas, e tinham contato diário com os brancos — por isso, costumavam aprender mais rapidamente o português e os hábitos dos brancos. Em geral, tinham melhores vestimentas e melhor alimentação, pois comiam os restos da cozinha da casa-grande. Contudo, o trabalho deles podia ser extenuante, e eles estavam sempre sob vigilância dentro do ambiente familiar do senhor. Criadas e mucamas, por exemplo, ficavam à disposição da sinhá quase 24 horas por dia, dormindo no chão do quarto da senhora para atendê-la prontamente. Apesar disso, desfrutavam de maior proximidade com as famílias dos proprietários e, às vezes, conseguiam favores por conta disso.
  • Os escravos de ganho (ou escravos urbanos) eram aqueles que circulavam pelas cidades e prestavam pequenos serviços em nome dos proprietários. Eles trabalhavam, por exemplo, como vendedores ambulantes, artesãos, carregadores, garis, empregados em obras públicas ou privadas. No Rio de Janeiro do século XIX, por exemplo, era comum ver escravas quitandeiras vendendo doces e frutas nas esquinas, ou escravos barbeiros oferecendo-se para cortar cabelos e aparar as barbas dos brancos. Esses escravos urbanos tinham certa liberdade de movimento e podiam guardar parte do que ganhavam (pecúlio) para, potencialmente, comprarem a alforria. Contudo, ao fim do dia, deviam entregar ao senhor parte dos seus ganhos — se não atingissem uma receita mínima, poderiam ser punidos. Muitos desses escravizados também serviam de mensageiros entre diferentes negros de várias partes da cidade, espalhando notícias (inclusive de rebeliões).
  • Os escravos especializados eram aqueles que desempenhavam funções técnicas e qualificadas nas propriedades. Eles eram, por exemplo, ferreiros, carpinteiros e cocheiros. Esses indivíduos, pelo conhecimento e habilidade, podiam gozar de maior respeito e benefícios. Por exemplo, os mestres de açúcar eram trabalhadores centrais para o funcionamento dos engenhos coloniais. Eles supervisionavam todas as etapas de produção do açúcar, um trabalho bastante complexo e, por isso, muito bem remunerado. Era comum que alguns mestres de açúcar recebessem melhor alimentação ou, até mesmo, pagamentos simbólicos e a autoridade para comandar outros escravos. Muitos desses escravos especializados eram africanos que já haviam exercido determinado ofício na África (como os ferreiros da região da Guiné), ou aprenderam um ofício na colônia. Em alguns casos, também, esses escravos atuavam como capatazes ou feitores de outros escravos. Muitos capitães do mato (caçadores de escravos fugitivos) eram eles próprios ex-escravos libertos ou até escravos de confiança armados.
A ilustração retrata uma cena urbana do Brasil escravocrata, provavelmente no Rio de Janeiro do século XIX, mostrando três mulheres negras em um ambiente próximo ao porto, com navios ao fundo e morros ao longe. Em primeiro plano, uma mulher sentada no chão, com expressão pensativa, veste saia azul, blusa branca rendada, lenço na cabeça e adornos como colar, brincos e pulseiras; ela apoia o rosto na mão e tem um cesto grande de cajus coloridos à sua frente. À esquerda, outra mulher, sorridente e de pé, equilibra uma bandeja de frutas sobre a cabeça, usa saia bege, avental vermelho e blusa clara, enquanto segura uma galinha e conversa com uma terceira mulher, parcialmente à mostra atrás de um muro, adornada com colares e pulseiras, que parece negociar a compra. O cenário conta com degraus, coluna e parede de prédio colonial em tons claros, transmitindo o cotidiano das quituteiras e vendedoras negras, com cores terrosas, detalhes nos objetos e roupas, além de uma atmosfera de trabalho, resistência e vivência afro-brasileira na cidade.
Uma escrava quitandeira vendendo caju no ambiente urbano. Pintura por Debret. Domínio público.

As condições de vida dos escravos no Brasil

Os escravos no Brasil viviam em condições bastante precárias. Nos engenhos, viviam nas senzalas, alojamentos coletivos próximos à casa-grande. O termo “senzala” adveio do idioma quimbundo, falado em Angola, e literalmente significa “residência de serviçais“ ou “aldeia”. As senzalas costumavam ser galpões compridos, de construção tosca – paredes de taipa (barro) e cobertas de sapé ou telha – com uma única porta e poucas janelas. Dentro dela, os escravos dormiam amontoados no chão ou em esteiras, muitas vezes acorrentados pelos pés durante a noite para evitar fugas. A superlotação e a falta de higiene tornavam esses locais focos de doenças. Em grandes propriedades, havia senzalas separadas para homens e mulheres; em outras, todos ficavam no mesmo barracão. Alguns senhores permitiam que casais escravos tivessem suas choupanas um pouco afastadas, mas isso era exceção.

A alimentação dos escravos era barata e de baixa qualidade, porém suficientemente calórica para mantê-los trabalhando (afinal, os senhores não desejavam que seus escravos morressem de fome). A base alimentar era farinha de mandioca e feijão, complementados por carne seca ou peixe seco em pequenas quantidades, e frutas que eles mesmos colhiam. Nas fazendas de café do Vale do Paraíba, um alimento muito citado era a “ração” feita de feijão preto cozido e farinha, às vezes com torresmos – servido geralmente duas vezes ao dia. Os escravos raramente tinham acesso a carne fresca ou arroz (esses eram quase luxos reservados aos brancos). Alguns senhores davam-lhes uma pequena parcela de terra para plantar uma roça de subsistência. Essa prática, que o historiador Ciro Flamarion Cardoso chamou de “brecha camponesa”, permitia a certos escravos manter cultivos ou criar galinhas nas horas de folga. Era algo vantajoso para os donos de escravos, pois tirava deles a responsabilidade de alimentar os cativos. Contudo, em muitos lugares, nem isso era permitido.

Em linhas gerais, os escravizados possuíam pouquíssimas vestimentas e objetos pessoais. Eles recebiam farrapos e roupas usadas dos brancos. Os homens costumavam trabalhar sem camisa, enquanto as mulheres usavam apenas saias ou panos amarrados. Muitos escravos andavam descalços ou usavam tamancos de madeira, assim como chapéus de palha improvisados, que serviam para protegê-los do sol. Essas tradições em termos de vestimentas também faziam parte do sistema de dominação dos negros — afinal, mantê-los com roupas grosseiras era uma forma de simbolizar a posição subalterna deles.

A violência contra os escravos

Os escravos não eram considerados súditos do Império, nem cidadãos, portanto não tinham direitos civis ou políticos. Eram classificados juridicamente como “coisas” (bens móveis pertencentes a alguém), embora a legislação os considerasse pessoas para fins penais (podiam ser punidos por crimes). Essa ambiguidade – coisa num contexto, pessoa em outro – evidenciava a desumanização a que foram submetidos. Nos termos da lei, eles não podiam casar-se, nem portar sobrenomes de família, nem possuir propriedades privadas. Também lhes era proibido testemunhar contra os brancos nos tribunais. Em suma, os escravos viviam à margem das garantias legais.

Apesar de não terem direitos, os escravizados tinham inúmeros deveres. Para explorar ao máximo o trabalho deles e reprimir as insubordinações deles, o regime escravista brasileiro foi mantido por meio de um sistema de violências institucionalizadas, tanto físicas quanto psicológicas. Os donos de escravos e os feitores lançavam mão de uma variedade de castigos cruéis, frequentemente legitimados por argumentos religiosos e morais da época. Pregava-se que o escravo precisava do “trabalho árduo como atividade disciplinadora e civilizadora”, um argumento cínico apresentado tanto por clérigos quanto por leigos.

Estes eram alguns métodos de punição e terror aplicados contra os escravos:

  • O açoitamento: O castigo físico mais comum era a surra de chicote. Os escravos eram amarrados a pelourinhos ou troncos e levavam determinado número de chibatadas, de acordo com a falta supostamente cometida (que podia ser desde produzir abaixo do esperado, até fugir e ser recapturado, ou simplesmente desobedecer uma ordem). Uma das formas de açoitamento mais comuns era o “quebra-negro”: a prática de espancar um escravo diante dos outros para “quebrá-lo” moralmente e ensinar a todos que deviam submissão. Havia feitores especializados em infligir sofrimento sem matar. As chibatadas provocavam lacerações nas costas e nádegas; muitas vezes deixavam cicatrizes permanentes (os chamados “vergões”). Escravos com muitas cicatrizes de chicote eram estigmatizados até pelos semelhantes, pois as marcas indicavam que eram fujões ou rebeldes.
  • As restrições ao movimento: Os escravos considerados fujões costumavam ser presos com coleiras de ferro e outros grilhões, os quais dificultavam que eles se deitassem ou se movessem livremente, evitando novas fugas. Essas algemas eram utilizadas no transporte de negros para o Brasil (nos navios negreiros), nas senzalas, e mesmo durante a jornada de trabalho. Em alguns casos, também eram utilizados troncos de madeira com orifícios para prender os pés e as mãos dos escravos, deixando-o deitado no chão, sem poder movimentar-se, às vezes durante vários dias.
  • O aprisionamento: As maiores fazendas costumavam ter seus próprios calabouços — celas escuras onde os escravizados podiam ser trancafiados por longos períodos. Por óbvio, os negros presos nesses locais não precisavam ter sido condenados por um tribunal, bastando somente uma ordem emitida pelo seu dono ou por um representante dele.
  • As máscaras de flandres: Elas eram um instrumento de ferro com uma espécie de mordaça que impedia o escravo de abrir totalmente a boca. Era usada para punir escravos que tentavam se suicidar comendo terra, na tentativa de retornar à África na vida eterna, ou que roubavam comida nas despensas das casas-grandes. Com a máscara, não conseguiam ingerir nada além de líquidos por uma abertura. Essa tortura podia durar dias, mantendo o indivíduo em constante desconforto e humilhação.
  • O abuso sexual: Várias mulheres escravizadas sofriam violência sexual sistemática, por parte de senhores, filhos de senhores ou feitores que as estupravam. Disso resultou uma grande quantidade de nascimentos de mulatos (filhos de branco e negra). Embora alguns senhores reconhecessem esses filhos e até os alforriassem, a maioria dessas crianças mulatas nascia na senzala e permanecia escrava, muitas vezes sem a paternidade assumida. O abuso sexual era parte cruel do poder senhorial, e não havia recurso legal para as escravas, que eram vistas como propriedade sem voz.
Esta imagem ilustra uma cena de castigo público e repressão violenta, comum durante o período escravocrata no Brasil. No centro, um homem negro, com a parte superior do corpo exposta e os punhos amarrados acima da cabeça em um poste de pedra, é chicoteado por outro homem negro, que veste calças amarelas e uma blusa azul, além de estar com correntes presas às pernas, indicando que também pode ser escravizado ou um capitão-do-mato. O chicote é grande, com várias pontas e sinais de sangue. As nádegas do homem amarrado apresentam feridas abertas e sangrando. No chão, ao lado do poste, há outros dois homens deitados, também feridos, cobertos de sangue, sugerindo terem passado pelo mesmo castigo. À esquerda, um grupo de homens negros aguarda em fila, alguns com expressões de dor ou resignação, todos vestidos de maneira simples e em condições visíveis de sofrimento. Guardas armados observam a cena, usando uniformes e chapéus típicos da época. Ao fundo, há casas coloniais, pessoas caminhando e observando a punição. A atmosfera é pesada, com tons terrosos e claros predominando, transmitindo o clima de medo, opressão e violência institucionalizada.
Um escravo sendo açoitado em público como punição. Pintura por Debret. Domínio público.

No Brasil, eram comuns as punições coletivas aos escravos: castigava-se todo um grupo de escravos por causa da falta de um indivíduo. Por exemplo, se alguém fugia e era recapturado, todos os escravos daquela unidade podiam ser punidos para desestimular novas tentativas. Esses castigos coletivos semeavam a desconfiança e a vigilância mútua entre os cativos, evitando a solidariedade entre eles – uma tática deliberada dos senhores para mantê-los controlados.

Além das torturas físicas, havia uma constante violência psicológica. Os escravos eram frequentemente chamados por xingamentos racistas ou degradantes e humilhados publicamente. Eles tinham sua identidade original negada, uma vez que normalmente eram renomeados pelos senhores, com a adoção de nomes cristãos em vez dos nomes africanos.

Os atos de resistência dos escravos

Diante da bruta violência que sofriam, os escravos não permaneceram passivos. Muito pelo contrário, eles desenvolveram inúmeras formas de demonstrar insatisfação, das mais sutis às mais abertas. No dia a dia, eles realizavam pequenos atos de insubordinação, como os seguintes:

  • Dissimulação e lentidão no trabalho: Alguns fingiam-se de doentes, ou trabalhavam mais devagar ou de forma mal feita de propósito, fazendo uma sabotagem silenciosa, para não dar lucro máximo ao senhor. Outros chegavam até a queimar etapas da colheita, estragar ferramentas, ou provocar incêndios nos canaviais e nos cafezais. Essas ações causavam grande prejuízo econômico aos senhores e, por causa disso, havia um grande esforço para tentar combatê-las.
  • Manutenção de práticas culturais próprias: Embora os senhores tentassem suprimir as expressões culturais africanas, os escravos encontravam jeitos de praticá-las clandestinamente. Danças e músicas tradicionais eram realizadas nas senzalas à noite ou em dias santos (quando se supunha que estavam celebrando festas católicas). A capoeira, por exemplo, surgiu como uma arte marcial disfarçada de dança – ela permitia aos escravos treinar luta e defesa pessoal, sob o pretexto de estarem apenas fazendo uma dança acrobática para “distração”. Isso muitas vezes acontecia em terreiros escondidos no mato, longe dos olhos do senhor e de seus capatazes.
  • Atos de violência contra os senhores: Existem registros de escravos que envenenaram comida de feitores ou senhores, ou que sufocaram crianças brancas sob seus cuidados. Esses casos eram raros, mas ocorreram, tal como insinuou o escritor brasileiro Machado de Assis no conto “Pai contra Mãe”. Essas retaliações diretas geralmente tinham consequências terríveis quando descobertas, mas mostram o desespero a que alguns eram levados.
  • Fugas temporárias para os mocambos: Às vezes, os escravos fugiam temporariamente das propriedades dos senhores. Eles queriam passar uns dias longe, esfriar a cabeça, ou até visitar parentes em outra fazenda, antes de retornarem espontaneamente para o cativeiro. Essas fugas curtas eram uma forma de resistência sem necessariamente representar uma ruptura com os senhores, o que possibilitava até a negociação de melhores condições de tratamento dos escravos, mostrando que não estavam dominados.

Apesar de toda a desconfiança e a vigilância inerentes ao sistema escravista, também floresceu a solidariedade entre os escravos. Nas senzalas, formavam-se verdadeiras famílias alternativas — os laços sanguíneos entre os africanos eram desfeitos pelo tráfico negreiro, mas surgiam novos laços, de consideração. Um adulto recém-chegado da África podia “adotar” um jovem como filho simbólico e transmitir-lhe saberes; mulheres mais velhas cuidavam das crianças enquanto os pais biológicos estavam no campo; nas festas de irmandades religiosas, escravos de diferentes engenhos confraternizavam. Essa sociabilidade ajudou no enfrentamento das violências e na criação de uma cultura afro-brasileira.

Esta ilustração mostra um grupo de pessoas negras, provavelmente escravizadas, em um momento de lazer e expressão cultural em um espaço ao ar livre, diante de casas coloniais de paredes brancas e telhados de barro amarelo. O grupo está reunido ao redor de um círculo, no qual dois homens, descalços e usando roupas coloridas (um com calças vermelhas e camisa amarela, o outro com calças listradas amarelas e verdes e sem camisa), praticam movimentos de capoeira, uma mistura de luta, dança e expressão corporal típica das comunidades africanas escravizadas no Brasil. Outros homens estão em volta, alguns batendo palmas, um tocando pandeiro e outro segurando um berimbau, instrumentos tradicionais da capoeira. À direita, algumas mulheres observam a roda, sendo que uma delas carrega uma cesta com frutas na cabeça, simbolizando o trabalho doméstico e a venda de alimentos. No fundo, há palmeiras e uma colina gramada, onde se vê uma casa ao longe. O ambiente é animado e colorido, ressaltando a vitalidade cultural diante das adversidades impostas pela escravidão. As texturas variam entre a rugosidade das roupas, a suavidade do solo de terra batida e a vegetação ao redor.
Uma roda de capoeira entre escravos. Pintura por Rugendas. Domínio público.

A cultura dos africanos no Brasil

Um dos aspectos notáveis da vida dos africanos escravizados no Brasil foi a preservação (e reinvenção) de elementos culturais africanos. Longe de serem totalmente “aculturados” ou de perderem suas referências culturais originais, muitos grupos de escravos mantiveram vivas tradições que, com o tempo, se incorporaram à cultura brasileira como um todo.

Ao chegarem ao Brasil, praticamente todos os escravos eram batizados na fé católica, o que era imposto pela Igreja como forma de salvar suas almas. Entretanto, a conversão forçada não significou abandono das crenças tradicionais. Os africanos escondiam suas devoções ancestrais sob o manto do catolicismo, em um processo de sincretismo religioso. Surgiram assim religiões e cultos afro-brasileiros que mesclavam elementos de diferentes regiões, culturas, e tradições.

O principal exemplo disso foi o Candomblé, que floresceu, em especial, na região da Bahia. Ele deriva de religiões africanas de base familiar e totêmica, particularmente aquelas dos povos iorubás ou nagôs e jeje da África Ocidental. O termo “candomblé”, todavia, só se firmou no início do século XIX; antes, usavam-se termos como “calundu” para as sessões religiosas dos escravos. Nessa religião, os praticantes cultuam divindades chamadas orixás, que correspondem a forças da natureza e ancestrais divinizados. Para driblar a vigilância, os escravos associavam cada orixá a um santo católico – por exemplo, Xangô foi identificado com São Jerônimo ou São João, Iemanjá com Nossa Senhora, Ogum com São Jorge, e assim por diante. Desse modo, podiam realizar suas cerimônias parecendo venerar santos cristãos. As cerimônias de candomblé aconteciam em locais afastados, em terreiros próximos às fazendas ou nas periferias urbanas. Elas incluíam cantos em línguas africanas, tambores, danças ritmadas e incorporações dos orixás nos fiéis — tudo isso transmitido pela tradição oral, de geração em geração.

Além do candomblé, desenvolveram-se outras práticas sincréticas regionais, como a umbanda, o catimbó e o toré. A umbanda surgiu na região do Rio de Janeiro com o intuito de misturar elementos do candomblé, do catolicismo e até do espiritismo kardecista. O catimbó e o toré, por sua vez, tiveram maior popularidade na região Nordeste, como uma fusão de elementos africanos, católicos e indígenas. Vale ressaltar que esse sincretismo religioso não foi exclusividade do Brasil, tendo sido observado também em Cuba e no Haiti, por exemplo, por meio da santeria e do vodu.

Além da religião, a musicalidade africana também se enraizou fundo na cultura brasileira. Os escravos trouxeram tambores (atabaques), marimbas, ritmos e cantos que influenciaram desde as festas populares até a formação do samba, séculos depois. Nas senzalas e quilombos, a música era fonte de força e união. Danças como o lundu e o jongo têm origem afro e eram praticadas nos quilombos e comunidades escravas. O jongo, em especial, difundiu-se nas fazendas de café do sudeste – também chamado de “caxambu”, era uma dança de roda ao som de tambores e canto responsorial, tida como avó do samba. A própria palavra “samba” provém de um termo africano — provavelmente banto, significando “dança coletiva”. Nas fazendas da Bahia, os escravos faziam festas de “samba de roda” em seus momentos de lazer, com canto e palmas.

Os africanos também preservaram elementos das suas línguas originárias, embora o português se tenha tornado a língua dominante no Brasil, muito em virtude das reformas implementadas pelo Marquês de Pombal. Diversas palavras de línguas africanas foram incorporadas ao português do Brasil, tais como “senzala”, “samba”, “quilombo”, “cafuné”, “dendê”, “munguzá”, “quitanda”, “moleque”, “fubá”, “oxalá”, “bagunça”, e “gingar”, entre muitas outras. Ademais, a entonação do português brasileiro foi influenciada pelos idiomas africanos, resultando em um jeito de falar diferente do português europeu.

Os escravos tentavam constituir famílias quando possível. A lei proibia o casamento entre pessoas escravizadas, mas elas costumavam celebrar uniões informais. Tais casamentos irregulares eram ora incentivados, ora rompidos pelos senhores — seja porque pensavam que escravos com família seriam menos propensos a fugir do cativeiro, seja porque, por vezes, era conveniente vender separadamente um casal de escravos. Também surgiram laços de família entre escravos e libertos.

Nas comunidades escravas, os laços de parentesco por consideração, como chamar um ancião respeitado de “tio” ou “papai”, criavam uma estrutura social interna. Havia lideranças informais, como “negros velhos” experientes que orientavam os mais novos, e as “tias” parteiras que ajudavam nos nascimentos. Nas senzalas urbanas do Rio de Janeiro havia até confrarias onde os escravos e libertos se organizavam mutuamente, caso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, composta majoritariamente por negros cativos. Essas irmandades religiosas afro-católicas tiveram papel crucial: além de promoverem a fé, seus membros ajudavam os necessitados, compravam alforrias, e realizavam festas e funerais dignos para escravos – ou seja, eram espaços de solidariedade negra sob permissão da Igreja.

Por fim, importa considerar a influência africana na culinária e na medicina popular brasileira. Eles popularizaram o azeite de dendê, o quiabo, o inhame e a feijoada — segundo reza a lenda, ela teria surgido do fato de os escravos misturarem os restos de carnes dos senhores com feijão. Eles também trouxeram para o Brasil o conhecimento de ervas e de práticas de cura medicinal, como os benzimentos e as garrafadas (mistura de ervas em uma garrafa para potencializar os efeitos médicos delas).

Conclusão

A trajetória dos africanos escravizados no Brasil foi marcada pela exploração desumana por meio do trabalho forçado em diversos setores econômicos, por condições de vida aviltantes e por uma violência sistêmica que visava a subjugá-los e a controlá-los. Contudo, mesmo diante de tamanha opressão e da negação de sua humanidade perante a lei, os escravizados demonstraram notável resiliência, desenvolvendo estratégias de resistência que iam da sabotagem cotidiana e da preservação cultural à luta e à formação de comunidades. Eles preservaram e recriaram suas ricas heranças culturais, cujo legado é fundamental para a identidade brasileira atual. Dessa forma, apesar da brutalidade do sistema escravista, a presença e a cultura africana persistiram e moldaram profundamente o país.

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